terça-feira, 13 de abril de 2010

Intrisecamente o mundo ainda chora


Ele havia guardado a voz na secretária, só pra não correr o risco de perder resquícios dela, vagava algumas noites quando chovia “quando chove o mundo chora” o mundo e ele. Havia uma rua comprida por onde seu olhar passava, sem maiores cuidados, uma senhora sempre estava sentada ali, a cadeira para trás e para frente, num movimento rotineiro e sem maiores intenções, balanço, mas chovia tanto e o mundo chorava, caminhava farto dos conceitos e dos laços supostamente formados, trazia consigo uma certeza somente, andar sem parar até que desaguasse nele aquela inquietude, levando todo o resto da cidade numa enxurrada de coisas novas, uma faca de dois gumes era tudo aquilo, alimenta o desejo de se perder e ao mesmo tempo o de reencontrá-la “ Volto assim que der , beijos”.

O cheiro de mofo há dias tinha tomado conta de sua casa e de sua alma, não conseguia discernir que tipo de dia teria sido aquele, como todos os outros? Duas ou três vezes tentou rasgar as fotos e queimar as cartas, mas havia a voz, e aquilo não era como todo o resto, queimar, rasgar exige ritual, mas apagar com um clic? Não poderia ser desta forma, teria de haver algo mais, teria de suprir o medo da capacidade de fazer tal coisa, queria beber algo que lhe tomasse o fígado como fel, mas só havia conhaque, então que seja...

Quantos dias se iam desde então? Dez dias, um mês, dez anos? Um século ele se sentiu assim, como se todo um século tivesse corrido e a voz ainda permanecia ali, contou quantos calendários tinha em seu quarto, perdeu-se nas contas o conhaque estava fazendo efeito, desligou a TV que se encontrava ligada somente para dar a impressão de alguém mais no cômodo, o ar lhe faltava, mas isso já lhe era conhecido, escreveu duas ou três palavras sinceras, não conseguiria mais do que isso. Foi feliz quando a teve, mas hoje não saberia diferenciar o real do sonho, é que a chuva ainda caia, sem capa ou qualquer agasalho desceu as escadas novamente, vento frio e neblina grossa não importam quando se perde os sentidos, àquela hora da madrugada poucos carros passavam por ali, pensou em tomar um taxi, mas pra onde?

Seguiu a pé, tinha de andar, tinha de respirar, tinha de viver, o motivo? O mundo ainda chora.

Um dezembro qualquer...

Deixou uma mensagem rápida na secretária “Volto assim que der beijos”. Arrumou o cabelo de forma descompromissada “Poxa o mundo irá desabar”. Em frente a loja de bugigangas se perguntou “Preciso mesmo comprar algo?”. Necessidade não é vontade e naquele momento o desejo de seja lá o que for era mais intenso, não sabe quantos minutos ficou ali para, algo lhe havia chamado atenção, uma caixa de música, não muito diferente de outras que tinha visto na infância ou até hoje, mas analisou como é triste ser bailarina de caixa de música, rodar, rodar, sem parar ao som da mesma melodia sempre, um som ao fundo fez com que ela acordasse da vaguidão, um tilintar na verdade, um mensageiro dos ventos que balançava alto dentro da loja “É isso preciso de um desses, preciso? Bom! Pelo menos irei ouvir outras melodias”

O sol saiu por entre as nuvens, mandando que todo o vento frio e chuva fossem embora, “Embora!” pensou ela, “Nunca poderei ir embora, nunca conseguirei ir embora”. Buscou seus cigarros na bola, uma criança que vinha junto à mãe nesse momento esbarrou nela, vinha com um sorvete na mão, de fato ficou toda lambuzada, tentando esquivar da mãe também desceu a calçada, se limpando e ainda procurando os cigarros,”Mas que droga! Pareço um pote de sorvete no final”. Acabou rindo de tudo aquilo “Mas onde estão os malditos cigarros?”. Do lado oposto da rua um carro zunia a avenida e sem prestar atenção o motorista que dirigia desesperadamente, efeito de bebida e feridas abertas, nem prestava atenção que iria chover, fechou-se o tempo. ”Meus cigarros cadê?”.

A TV no mesmo canal, a voz ainda viva, os calendários e a mesa posta, ” Volto assim que der beijos”. Precisava ir sempre, mas por quê? O mundo ainda chorava.